Sergio Cruz Lima
O coração do rei
Sergio Cruz Lima
Presidente da Bibliotheca Pública Pelotense
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Impassível, sem vacilo, mão segura e bisturi afiado, o cirurgião faz um corte no peito magro. Abre a pele e encontra o esterno. Serra-o sem dificuldade, de cima para baixo, e alcança o pericárdio. É preciso arrancar deste corpo o coração que já não bate, mas não se arranca com facilidade o coração de um morto, sobretudo se o morto for um rei. Cortadas as amarras, o coração é colocado em uma bacia de prata e a solene procissão de cortesãos leva-o a dona Maria II, que não tem mais lágrimas para revelar sua dor, apenas vontade de abraçar de encontro ao seu o coração do pai. E a jovem rainha de Portugal, imersa em ternura, faz um juramento temerário para quem tem apenas 15 anos de idade: jura que seu coração de filha baterá sempre como aquele, pleno de bravura, honra e afeto pela vida.
A morte ocorrera no mesmo quarto do Palácio de Queluz onde ele nascera 36 anos antes. E ela não o apanhara impróvido. Nas barricadas de Lisboa, por ocasião da luta contra seu irmão dom Miguel, que se apossara do trono lusitano, ao curvar-se torcido por um acesso de tosse, o rei escarrara sangue. Ele somente desconhecia que a morte o apanharia tão cedo, quatro meses depois de o exército miguelista depor as armas. Amaro e breve fora o gosto da vitória. Na tarde de 24 de setembro de 1834, cerrou para sempre os olhos aquele que tivera da vida tudo em dobro, uma parte herdada e a outra conquistada - fora imperador do Brasil e rei de Portugal, tivera duas pátrias e dois povos, escrevera seu nome na história de dois continentes e amara tantas mulheres que até seu confessor perdera a conta. No dia seguinte seu cadáver foi autopsiado para identificar os males que o haviam matado e os médicos - pasmos! - se perguntaram como ele sobrevivera nas barricadas por longos dois anos. Raro era o órgão indispensável à vida que não apresentava lesões. O coração e o fígado atrofiados; o pulmão esquerdo inundado pela tuberculose, apresentava-se denegrido e friável; nos rins, um cálculo esbranquiçado; o baço, amolecido, se desfazia.
O enterro, no dia 27, obedeceu ao ritual determinado em testamento. Não quis luxo, mas caixão modesto. Nem roupa de rei, mas o uniforme de general do exército português. Mais: pedira que não houvesse no féretro nenhuma diferença de classes. Assim, nobres e plebeus, ricos e pobres se misturaram no Real Cemitério de São Vicente de Fora, onde seu corpo foi depositado. Seu coração seguiu para a cidade do Porto. Lá encontra-se guardado na capela-mor da Igreja da Lapa em um vaso de prata, dentro de um vaso de cristal. E ali encontra-se até hoje. Sem o Porto, dissera: não teria vencido o irmão que lhe usurpara o trono, nem teria nele colocado a filha Maria da Glória. "Meu coração é teu, ó Porto!" No vaso de prata lê-se uma frase proferida por ele na última visita ao Porto: "Eu me felicito a mim mesmo por me ver no teatro da minha glória, no meio dos meus amigos a quem devo, pelos auxílios que me prestaram durante o memorável sítio, o nome que adquiri e que, honrado, deixarei de herança a meus filhos". Hoje, os restos mortais de dom Pedro I, do Brasil, dom Pedro IV, de Portugal, descansam para sempre no Monumento do Ipiranga, em São Paulo, no local em que proclamara a independência do Brasil.
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